quinta-feira, 30 de julho de 2009

A escuridão para além da luz

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Tomando como ponto de referência a luz da razão, podemos estabelecer dois estágios no difícil caminho da espiritualidade: uma escuridão que permanece aquém da razão e uma escuridão que vai além da razão.

 

No primeiro estágio, temos a ignorância quanto a determinadas leis da natureza, do universo e até mesmo da sociedade e do comportamento da pessoa humana. Frente a essa carência do conhecimento, desenvolve-se um tipo de espiritualidade que prima pela magia. Pressupõe uma leitura fatalista e estática da realidade, onde o ser humano não tem qualquer poder de transformação. "Só Deus pode dar um jeito", diz com freqüência a piedade desse tipo.

 

Neste caso, a escuridão encontra-se aquém da razão. Isto não quer dizer que essa forma de espiritualidade não comporte uma fé profunda e autêntica. Fé que muitas vezes vem de nossos familiares, especialmente de origem rural. Buscam a Deus, sem dúvida, mas facilmente abdicam da própria liberdade de criar, inovar, recriar. Prevalece a obediência às regras e preceitos. Nos escritos de Paulo, isso aparece como subordinação à antiga lei judaica, enquanto o apóstolo insiste que "fomos libertados para viver na liberdade dos filhos de Deus".

 

No segundo estágio, marcado pela escuridão para além da luz, embora a razão conheça os mistérios da natureza, da história e do homem, a alma pressente que esse racionalismo calculista não explica tudo. A ciência disseca as leis que regem o universo, disseca as forças que movem a história, disseca o funcionamento dos organismos vivos, incluído o ser humano. Mas não consegue encontrar um sentido mais profundo para a existência e o funcionamento dessa gigantesca obra. Continuamos reféns do renascimento e do iluminismo, de uma ciência instrumental e pragmática.

 

A razão "desencanta" o mundo e a história, para usar a expressão da Max Weber. Mas seu raciocínio é transparente demais para dar conta de alguns mistérios ocultos, lógico demais para dar conta das incongruências e contradições de nosso percurso humano sobre a face da terra. Interrogações e dúvidas existenciais continuam se levantando, e a luz da razão parece mais cegar do que iluminar. O ser humano está projetado para superar-se dinâmica e continuamente. Segue inquieto por mares bravios, navegando de porto em porto, como hóspede de um mundo inóspito e provisório, a caminho da pátria definitiva. O que não o impede de buscar formas históricas sempre mais justas, fraternas e solidárias. O Reino de Deus, porém, não se reduz a nenhuma delas, chamando-nos continuamente a dar um passo à frente.

 

É então que a alma mergulha num campo de sombras, que se encontram além e acima da razão. Aqui predominam o abandono e a confiança em Alguém que, ocultamente, confere uma significação desconhecida à vida terrestre e a seus aparentes absurdos. Entra em cena o salto da fé sobre o escuro das interrogações profundas,  sobre o abismo das dores sem remédio e sobre o futuro incerto. Imagens como deserto, silêncio, abandono e escuridão costumam representar esse mundo das trevas. Nele não há perguntas nem respostas, porque a resposta a todas as perguntas já foi dada uma vez por todas no alto da cruz. O ato de amor supremo no contexto de uma violência extremada revela a toda a misericórdia humano-divina e divino-humana.

 

Somente atravessando esse deserto árido e escuro, não raro solitário, é que a face oculta de Deus lança alguns raios, sempre fugazes e instantâneos, que abrem pequenas veredas no meio de um grande sertão, como diria Guimarães Rosa. A escuridão aqui, embora efêmera e fugazmente, brilha mais forte do que toda a ciência construída pelos conceitos da razão. Um pequeno raio de luz supera horas, dias e meses de trevas. Supera, nutre e orienta o caminhante do deserto. Essa trajetória espiritual ou mística, cheia de avanços e recuos, nos ensina não tanto a pedir clareza para continuar a estrada, mas a pedir forças para caminhar no escuro.

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Pe. Alfredo J. Gonçalves *

* Assessor das Pastorais Sociais.

Fonte: Adital

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